[:pt]Baleia ou barriga? – Por Carlos Orsi [:]

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Em sua imortal crítica à novela Brejal dos Guajás, de José Sarney, Millôr Fernandes, irritado com o uso inadequado do condicional (“iam”, “deviam”) reclama: “afinal, deviam chegar ou chegavam? o autor tá aí pra dar informações, pô!”. Imagino que, se o autor de uma obra de ficção “tá aí pra dar informações, pô!”, o jornalista, mais ainda. Infelizmente, a grande imprensa brasileira parece estra se esquecendo disso. Caso em tela: o infame “jogo da Baleia Azul”.

 

A coisa começou a me incomodar ontem à noite, quando o painel do Em Pauta, da Globo News, que pretensamente reúne alguns dos comunicadores mais influentes e qualificados do Brasil, começou uma discussão histérica sobre o assunto, como se a existência dessa suposta “ciranda da morte” online, manipulada por sinistros vilões anônimos “que têm de ser presos”, já fosse um fato estabelecido.

 

É meio deprimente ver gente como Eliane Catanhêde, que passa mais da metade de seu tempo em tela esbravejando contra fake news e enaltecendo as qualidades da “mídia responsável” (mirabile dictu, a que paga o salário dela) se prestar ao papel de dama indignada com os criminosos online sem antes, pelo menos, checar uma parada obrigatória como o Snopes, cujo veredicto sobre a Baleia Azul é: UNPROVEN.

 

Ou seja, “não comprovado”. O artigo do Snopes vai a fundo na história — lenda urbana? — de que adolescentes estariam se reunindo em “grupos baleia azul” para cometer suicídio e/ou incitar outros ao suicídio. O mito parece ter nascido de um erro de interpretação de uma notícia publicada na mídia russa em maio de 2016. A notícia russa aponta que “pelo menos oitenta” de 130 suicídios infantis registrados entre novembro de 2015 e abril de 2016 estariam vinculados à “baleia azul”.

 

O Snopes traz ainda um link para uma reportagem investigativa realizada pela Radio Free Europe que, ao mesmo tempo em que aponta um estado de pânico social em partes da Ásia Central e da Europa Oriental por causa da “baleia azul” — “Na Rússia e nos países centro-asiáticos do Cazaquistão e do Quirguistão, manchetes alarmantes sobre a Baleia Azul tornaram-se uma ocorrência quase diária: uma criança ou adolescente estaria sendo incitado a cometer suicídio, ao participar de um ‘jogo’ mórbido online, estimulado por hashtags em russo (…)” — reconhece que “não há uma única morte na Rússia ou na Ásia Central que tenha sido ligada definitivamente à Baleia Azul”.

 

Mais adiante, a reportagem acrescenta:

“Nos últimos seis meses, mais ou menos, dezenas de suicídios e tentativas de suicídio na Rússia, Cazaquistão e Quirguistão foram, provisoriamente, ligados ao jogo, embora, numa investigação mais detalhada, nenhum tenha sido ligado a ele de forma conclusiva”. Os jornalistas da Free Europe criaram um perfil falso de menina adolescente para tentar penetrar no “jogo” — que envolveria a realização de 50 missões, sendo a última, o suicídio — , e chegaram a obter contato com alguns supostos “curadores” (que é a forma como a mitologia criada em torno do jogo se refere aos distribuidores de missões), incluindo a ordem da primeira “tarefa”, produzir prova fotográfica de uma automutilação — e que foi diligentemente simulada em Photoshop.

 

Mas nenhum contato passou desse estágio: depois de uma ou duas interações misteriosas e insinuações melodramáticas (“Se você morrer você ganha o jogo. Se você perder, nós a ajudaremos a ganhar”) todos os curadores simplesmente pararam de responder.

 

Algo semelhante foi tentado pelo blogueiro Julio Boll, da Gazeta do Povo de Curitiba, nesta semana. Boll também conseguiu contato com supostos “curadores” do jogo, mas todos se revelaram, na verdade, resgatistas infiltrados, pessoas bem-intencionadas ou proselitistas evangélicos que se faziam passar por curadores mas que, na verdade, estavam ali para puxar conversa com potenciais suicidas e dissuadi-los. Sem fazer pouco caso das boas intenções das pessoas, há algo de essencialmente ridículo num grupo de vilões onde todos, na verdade, são heróis disfarçados.

 

O material da Free Europe data de fevereiro deste ano. Se se tivessem dado ao trabalho de lê-lo, os jornalistas da tal grande-mídia-corporativa-responsável-que-representa-nosso-último-baluarte-contra-as fake-news-da-internet talvez estivessem melhor preparados para informar, em vez de apenar alimentar as chamas do que pode muito bem não passar de uma mistura de brincadeira de mau gosto com pânico social baseado em boatos.

 

A edição de hoje de O Estado de S. Paulo traz uma página lastimável, onde nada menos que nove (!!) jornalistas aparecem mobilizados para produzir — nada. Há texto, há sentenças gramaticalmente corretas, há declarações de fontes diversas mas, violando o dito de Millôr, não há informação nenhuma. O conjunto simplesmente deixa o leitor, que talvez gostasse de saber o que é esse negócio de baleia azul e até que ponto o problema é sério, a ver navios.

 

Vamos lá, gente. Ou não há evidência de que o jogo é real, ou o jogo consome almas pelo mundo afora. Que as fontes discordem entre si é compreensível, mas o trabalho do jornalista é transmitir a verdade dos fatos, ou a melhor aproximação da verdade dos fatos possível até a hora do fechamento, ao leitor. Simplesmente anotar “ele disse, ela disse” e lavar as mãos dessa responsabilidade não é legal. Só o que se tira do material publicado pelo vetusto diário do Limão é que parece haver um problema e tem gente preocupada com ele. Muito pouco por R$ 4, o preço do exemplar.

 

É bem provável que o jogo não seja “verdadeiro”, no sentido de haver uma central diabólica de manipuladores psicológicos, em ação nas Montanhas do Cáucaso, dedicada a predar crianças e adolescentes online, só pela farra. Na verdade, a história toda soa demais como o enredo de um filme de terror vagabundo, ou uma imitação barata de Black Mirror. Ela também joga com as angústias dos pais dos adolescentes, ao postular um perigo que vem de um mundo que eles conhecem mal, mas em que seus filhos se movem com desenvoltura — a internet.

 

Mas a mera ideia do jogo — e sua disseminação irresponsável — é, sim, perigosa, e em quatro níveis. O primeiro, destacado pela Free Europe, é o de que o pânico moral e a sensação de insegurança gerados acabem servindo de pretexto para atos de censura e restrições de direitos digitais. O segundo é o do desvio de recursos e energia, que poderiam ser investidos em problemas reais, numa caça a bruxas imaginárias.

 

O terceiro é o do jogo tornar-se, em certa medida, real: na ausência de curadores verdadeiros, qualquer um pode se fazer passar por um deles, aproveitando a aura de mistério e autoridade sobre-humana gerada pelo mito. O material da Gazeta do Povo sugere que já há gente, aparentemente bem-intencionada, fazendo isso. Não é improvável que piadistas de mau gosto ou, até, alguns predadores reais venham a fazer o mesmo. Na internet, a barreira entre mito e realidade é especialmente porosa. A imagem que abre esta postagem é a foto original do Slenderman, um “monstro sobrenatural” criado como parte de uma competição de Photopshop, mas que acabou sendo levado a sério por algumas pessoas, com resultados trágicos.

 

Por fim, o quarto risco é o de uma caça às bruxas imaginárias acabar se voltando contra pessoas que não são nem bruxas, nem imaginárias. A reação das “pessoas de bem” a pânicos morais, não raro, deixam mais vítimas inocentes que a causa original da indignação. O ponto é que a mídia pode funcionar como freio ou acelerador desses processos. Alguma responsabilidade cai bem nessa hora.

 

FONTE: http://carlosorsi.blogspot.com.br/2017/04/baleia-ou-barriga.html

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