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Toda reformulação de tecnologias convida a reconstrução de nossas formas de cuidado e educação de crianças. Tememos por seus efeitos deletérios e sonhamos com seus benefícios. Freud dizia que o mesmo progresso que trouxe as linhas ferroviárias levando para longe nossos entes queridos, inventou o telefone que vence tal distância. Lacan formalizou o problema de uma forma mais trágica: não há progresso, como não sabemos o que perdemos não podemos avaliar o que estamos ganhando.
Ainda assim a transformação de uma forma de vida deixa relíquias que cultivamos como cultura e ruínas vivas que são como sequelas de um futuro que não pode ser antecipado. Agora, quando temos uma primeira geração nascida e criada com acesso farto e irrestrito à vida digital, podemos começar a separar um estilo de vida, como o Nerd ou Geek, de novas formas de sofrer, aqui agrupadas em torno da intoxicação digital infantil.
Como qualquer tecnologia ela apenas favorece ou intensifica disposições já existentes, por isso os traços descritos a seguir devem ser compreendidos como exemplos de usos que uma criança pode fazer da vida digital, geralmente em associação com certas condições de relação familiar e educação que lhe são conexas e complementares:
(1) Super-oferta de presença. Crianças entre zero e dois anos, expostas a tablets desenvolvem uma ligação extrema com a presença do outro, representado pela oferta de imagens atraentes e estimulação auditiva ou sensorial adaptada às demandas da criança. Esta espécie de chupeta eletrônica não apenas traz prejuízos para a formação do sistema viso-motor ou da atenção, ela introduz uma novidade intersubjetiva, a crença de que o outro está sempre disponível.
Freud observou seu neto jogar para fora do berço um carretel atado a uma linha e puxá-lo de volta, dizendo prazerosamente: “aqui” e ”lá”. Disso ele intuiu um modelo de simbolização a partir do brincar. Ao agir assim a criança substitui a mãe ausente pelo carretel presente. Ela inverte a experiência vivida passivamente, com a ausência da mãe, em um fazer ativo jogando e puxando o carretel.
O terceiro fato simbolizante está na introdução de uma palavra significante: aqui-lá. Ela substitui a angústia da ausência e da presença excessiva da Coisa materna. Tablets reagem a gestos não a palavras. Eles pacificam não apenas porque fazem a função do carretel que substitui o adulto cuidador, mas porque propõe novos estímulos visuais e acústicos. Isso elimina o tempo morto, no qual a ausência do outro é o tempo desconfortável, porém criativo, de invenção de seu substituto lúdico. Neste tempo “perdido” aprendemos a nos acalmar, mas também a nos interessar pelo outro.
A criação de um dispositivo de ocupação total, sempre disponível tornou as situações de espera situações de ocupação. Fixa-se uma maneira de estar permanentemente com o outro em presença, o que confirma a suposição de que ele está sempre interessado em nos ofertar atenção, objetos, imagens ou palavras. É um modelo de criação e filhos que tem por horizonte a formação de um consumidor exigente, que sabe que tem sempre razão e que pensa o outro como um mercado que tem o dever de agradá-lo, estando sempre à nossa disposição.
(2) Isolamento e redução do laço social. A suposição de que o Outro toma sempre a iniciativa afeta a estrutura da demanda, interferindo na formação de atitudes como dar, receber, pedir ou compartilhar. Quando o Outro não me oferta nada isso é lido como signo de desamor e indiferença, mas sem incitar o trabalho para fazer-se interessar ao outro. Duas oposições elementares da gramática amorosa podem sofrer prejuízos aqui: Amar e ser amado (atividade e passividade) e amor ou ódio (oposição de conteúdo) são submetidas a uma terceira oposição, mais genérica, entre amar e ser indiferente. Se identifica com presença e oferta, a ausência se traduz por desamor e indiferença.
Neste cenário saber administrar a indiferença torna-se uma habilidade tão crucial quanto cruel. Isso pode ser feito tanto pela suspensão quanto pela fixação em um dos quatro pontos de sustentação da demanda: pedir, recusar, oferecer e negar. O ponto de retorno da demanda sobre si mesma, o ponto no qual a criança diz “não é isso!”, não dá início a uma nova série baseada em “eu te peço”, mas transforma-se em uma atitude, uma posição subjetiva. A vida no condomínio digital cria muros de indiferença baseados na seletividade de oferecimentos, filtrados portargets e big-datas, repetem escolhas anteriores, tornando cada vez mais invisível a diferença. Reduzem o tamanho do mundo o que acaba por aumentar o tamanho do eu. A exclusão do outro perturbador, a recusa da diversidade e o bullyng digital são signos desta patologia da gramática da demanda.
(3) Depressividade desejante. O imperativo da oferta amorosa em presença, a erotização da recusa-indiferença, facilitados pela linguagem digital, podem suturar o intervalo no qual a demanda evolui para o desejo com uma espécie de consolo de gozo. Surgem crianças para as quais vídeo-game e redes sociais não são apenas causa, mas solução para a decepção com o Outro. Apatia, seletividade alimentar, dificuldades de sono, restrição social, obesidade, redução do espectro de interesses são uma paisagem conhecida.
Acrescentemos aqui dois traços estruturais (a)abulia, dificuldade de iniciar um ciclo de comportamento, o esforço desproporcional para dar o primeiro passo como levantar pela manhã, sair de casa ou pegar no sono e (b) a anhedonia, perda da capacidade de experimentar satisfação, ainda que condições objetivas para isso sejam dadas. Reduz-se o arco de trabalho subjetivo que articula experiência de satisfação e desejo. Muitos dispositivos digitais baseiam-se em séries muito simples cuja gramática elementar apenas se torna mais extensa e acelerada, mas não mais complexa, como por exemplos em vídeo games como Candy Crush ou Mine Craft. Arcos de trabalho subjetivo mais simples, percebidos genericamente como “altamente viciantes”, convidam a criança a “sair do ar”, a “agir sem pensar”, sobrepondo depressivamente, o que é agradável ao que é desejável.
(4) Déficit narrativo na construção de intimidade. A depressividade do desejo usualmente se faz acompanhar por efeitos de identificação, idealização e crítica. Na criança isso acaba tornando mais difícil os momentos de assunção subjetiva de uma nova imagem, nos quais será preciso enfrentar a contingência e incerteza identitária e corporal, que nos expõe ao juízo do Outro. A indeterminação típica destes momentos abre a situação para o que a psicanálise chama de transferência, basicamente a reedição de pedidos retidos ao longo da história do sujeito em um novo laço de saber e desejo.
Quando nos pomos a narrar a história de nossas demandas e compartilhar nossas incertezas elas se transformam dando ocasião a mudanças em nossa forma de amar e pedir. A vida digital expõe crianças a narrativas interessantes, variadas e complexas. Elas servem de suporte para idealização e identificação, mas nem sempre oferecem as condições de pessoalidade e singularidade que a transferência requer. Animés como Pokemón, Yugi-Oh e Naruto são histórias longas, com infinitos personagens, baseados na cultura da honra, da autoridade e da vergonha.
Nem sempre esta estrutura narrativa desloca-se para a produção transferencial, acentuando a confusão típica da infância entre identificação, amor e desejo. Youtubers como Kéfera e Cristian Figueiredo fazem isso de forma mais eficaz. A dificuldade de narrativizar seu próprio sofrimento, compartilhando-o com outros, problematizando seus destinos, conecta-se com certos sintomas de linhagem “atuativa” tais como o cutting (cortar-se para aliviar a angústia), o binge (comer rápida e impulsivamente), a anorexia (recusar comer), a bulimia (comer e vomitar em seguida), a compulsão ao consumo (acumuladores, adictos), quando não afeta diretamente a fala como no mutismo seletivo, aliás, ascendente entre crianças orientais. O fracasso na constituição de experiências de intimidade é outro efeito da recusa de experiências de indeterminação e do excesso de individualização da demanda.
A benéfica confusão transitivista entre atividade e passividade, a experimentação das relações de posse, uso e propriedade, assim como compartilhamento contínuo de projetos futuros e histórias passadas, podem ser evitados com os recursos digitais. A facilidade de oferta e troca de intimidade em espaços virtuais estimula formas discursivas e ilações de fantasia muita à frente do momento real vivido pelos participantes, especialmente quando se tratam de crianças.
(5) Indeterminação da Privacidade e Autenticidade. Quando os meios digitais oferecem poucas experiências produtivas de indeterminação aumenta para a criança o valor identificatório das experiências improdutivas de indeterminação. Uso de perfis falsos, mecanismos de anonimato como nicknames e avatares, identificações de grupo, favorecem um regime de inconseqüência na relação com a palavra e com a imagem, segundo a fórmula freudiana do “eu sei, mas continuo agindo como se não soubesse”. Neste caso, atitudes autênticas e íntimas são expressas por meios interesseiros. O humor é uma solução para esta divisão, contudo aqueles que fracassam em se defender desta maneira serão expostos aos efeitos da inconseqüência com a palavra.
Se o compromisso com o que se diz fica cada vez mais ligado ás condições “atuais” de sua enunciação, estaremos expostos a desconfiança de que alterações de rota podem ser feitas a qualquer momento. Daí tantas crianças esquivas ou ressentidas diante da privacidade sem autenticidade. Daí também tantas crianças que sofrem com errância atencional e sentimento de inadaptação a contextos sociais regidos pela lei do desempenho narcísico. Elas recusam situações nas quais as regras não são “fluidas” ou renegociadas com rapidez, situações que não possam ser desfeitas com a rapidez de um clique ou que sugiram a excessiva ou indesejável intrusão. Sofrem assim de uma versão acelerada digitalmente do complexo de porco espinho: se o outro está muito perto ele “cola”, se está muito longe ele entra em indiferença. Os descompassos no tempo, os desajustes de intensidade, os desalinhos de orientação, constitutivos da situação de intimidade, são pouco tolerados, uma vez lidos como sinais de inautenticidade e improdutividade.
(6) Hipertrofia das expectativas narcísicas de reconhecimento. A manipulação da imagem de si é o passaporte de entrada para o mundo digital. Redes sociais ampliaram de forma dramática nossas gramáticas de reconhecimento ampliando nossas escolhas sobre os termos nos quais queremos ser reconhecidos. Há quarenta anos, alterar o ambiente de reconhecimento no qual se vivia era uma operação difícil. Os colegas de escola eram aqueles, os vizinhos de rua também, a família era casamata de identidades posicionais. Há cem anos uma mulher como madame Bovary poderia ser trucidada simplesmente porque ousava sonhar outra vida para si. Poder escolher como, por quem e quando se quer ser reconhecido criam tribos antes improváveis como amantes de capim e auto-amputadores dos próprios membros.
Pequenos aforismos criam grupos de identificação: “Não fui eu, foi meu eu-lírico”, “Ás vezes eu finjo que entendo”, “Vegetarianos não praticantes” ou “Eu nunca terminei uma borracha”. Podemos sonhar em ser um personagem, musical ou atitudinal, com milhões de views, apenas contando nossa miséria particular de uma forma engraçada. Junto com isso a criança convive com a desagradável sensação de que a vida de seus amigos e conhecidos está envolta em um mar de gratificações, estupendas realizações e intermináveis experiências de sucesso. Só aquelas pessoas que ela conhece, real e pessoalmente, são fracassadas e irrelevantes.
Jovens que dedicam-se laboriosamente aos seus sonhos, enfrentando dificuldades compatíveis sentem-se exceções lamentáveis em um mundo que se apresenta injustamente difícil para eles. A modificação de impressões e o exagero perspectivo, que só traz à luz os “melhores momentos” de cada vida gera um mistura de decepção e falsa promessa. Isso traz consigo o inevitável sentimento de atraso, impaciência e inquietude cuja forma enunciativa básica poderia ser: “não construí nada, tenho 25 anos e ainda não … x”.
(7) Intoxicação digital infantil. O laço digital de reconhecimento requer a ingestão continuada de substâncias venenosas repleta de soluções para conflitos subjetivos. Nestes casos a presença intrusiva do Outro como oferta e incitação não é só uma contingência, mas uma condição sem a qual o laço social e discursivo não acontece. Quando o Outro nada lhe oferece surge a angústia da desaparição, o sentimento de inexistência, a queda e o estranhamento do lugar do Outro.
Por isso o primeiro sinal da intoxicação digital é a experiência de ausência de si. O sentimento de que a criança perdeu sua capacidade de estar com os outros. A redução seletiva da capacidade de afetar-se com o outro apresenta-se como um alternância entre intensificação (por exemplo, o stress situacional do jogo) e a angústia apática resolvida por atos e comportamentos, mais do que por palavras e representações.
Em vez de uma redução da simbolização ou da capacidade de fantasiar, a intoxicação digital envolve uma espécie de exteriorização do fantasiar, um fantasiar a céu aberto, com embaralhamento entre intimidade, privacidade e publicidade. Daí uma espécie de recuo ou evitação diante do conflito, ou inversamente, uma espécie de negociação permanente das regras. Como na vida digital estar com o outro é exercer sua mestria o conflito decorre de que as regras do mundo virtual são quase as mesmas do mundo real do qual ele faz parte.
Por exemplo, falar com o outro envolve uma coerção pelo tempo. O outro fala, eu devo dizer algo, naquela hora. Se ainda assim eu não o fizer, meu silêncio será interpretado como uma mensagem. Na comunicação digital é quase a mesma coisa, mas há uma sensível diferença: eu posso ver a mensagem e responder quando quiser, eu posso deixar o outro na dúvida, eu posso criar suspense ou simular minha recepção. Tudo isso como uma espécie de defasagem temporal.
Tanto a depressividade desejante o déficit narrativo são efeitos de uma transformação trazida pela vida digital em termos da estrutura do saber. O saber, bem como a autoridade que dele decorre, está sempre disponível e sem descontinuidade. Não há hiato ou intervalo necessário para que a demanda do Outro seja traduzida para a forma “mas o que ele quer naquilo que ele me pede?” Esse saber sem descontinuidade ocorre também na gramática das adições, na qual o laço entre procedimentos e satisfações está garantido e seguro, o que não sugere uma relação de causalidade entre vida digital e adições, mas uma plataforma intersubjetiva e de linguagem, para que modos de sofrimento contemporâneos como a depressividade, o déficit de intimidade ou de narratividade, bem como a dificuldade de manter transferências se instalem.
Pais que usam a vida digital como pacificador, que não falam, nem se interessam ou participam do universo simbólico que esta traz consigo, que demonizam a cultura digital, como se ela fosse uma droga ou uma má companhia da qual devemos proteger seus filhos, estão contribuindo direta ou indiretamente para a intoxicação digital de seus filhos e para a crença, esta sim perigosa que o demônio está nos objetos e nas linguagens e não no que fazemos com elas.
Quando seus filhos tornam-se zumbis inacessíveis e inabordáveis geralmente eles não conseguem reconhecer como o mundo digital apenas respondeu ou ampliou o modo de relação eu eles mesmos propõe com o amor, com a demanda, com o desejo, com o saber. Pais que usam os recursos digitais para exagerar sua influência narcísica sobre seus filhos, por exemplo, para manter a falsa promessa de presença infinita, criam o brilho eterno de uma mente sem lembranças, do qual posteriormente se queixarão.
Fonte:
Christian Ingo Lenz Dunker
http://brasileiros.com.br/2017/02/intoxicacao-digital-infantil/[:]