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A dor indizível por causa da perda do filho Erik Robinson, de 12 anos de idade, numa brincadeira silenciosa e traiçoeira conhecida por “jogo do desmaio” teve de ser transformada. Ou encorpava outro significado ou a assistente social norte-americana Judy Rogg não ressuscitaria de um pesadelo que a tomou em 2010.
O desaparecimento precoce do filho único e a recusa da escola em tratar sobre o assunto com os pais e a comunidade levaram Judy e a terapeuta Stephanie Small a fundar a Erick´s Cause (www.erikscause.org). Uma entidade sem fins lucrativos que estimula, pelo mundo, a conversa e a prevenção contra jogo do desmaio ou asfixia. Uma desafio que induz o jogador a interromper a circulação de oxigênio, podendo levá-lo a óbito ou causar danos.
O POVO esteve com Judy Rogg durante o 2º Colóquio Internacional sobre Brincadeiras Perigosas, realizado em Fortaleza pelo Instituto DimiCuida. Confira os principais trechos da conversa.
A entrevista contou com tradução simultânea da psicóloga Fabiana Vasconcelos.
O POVO – Seu filho, o Erik, sabia sobre o jogo que estava jogando?
Judy Rogg – O Erik aprendeu o jogo da asfixia ou do desmaio um dia antes de morrer, praticando-o. Ele era um escoteiro mirim, um garoto de 12 anos, cheio de energia, responsável, saudável, tinha uma vida cheia de atividades. Ele não sabia sobre as consequências do jogo. Na segunda-feira aprendeu e na terça, praticou.
OP – Como ele conheceu?
Judy – Durante a investigação da polícia existia um silêncio muito grande entre as crianças. Ninguém queria falar com medo de um repreensão por parte dos pais, com medo até de apanhar. Então ninguém falava. Mas uma criança rompeu a corrente do silêncio. A polícia descobriu que o Erick estava com outra criança no pátio da escola,um ensinando um ao outro como se jogava. Isso foi na segunda-feira. Na terça, os investigadores descobriram que o Erik estaria muito frustrado com o dever de casa dele. Para limpar a cabeça, para se sentir mais leve, “jogaria” e depois voltaria a estudar. Eu o perdi por cinco minutos…
OP – Já o encontrou sem vida?
Judy – Eu tinha o hábito de me comunicar através de mensagem pelo celular. E eu havia dito que estaria em uma reunião, mas assim que saísse ligaria. Comecei a achar estranho ele não responderas mensagens.Por cinco minutos fiz essa tentativa e percebi que havia algo errado. Eu moro a cinco minutos do trabalho e resolvi deixar tudo e fui para casa. Quando cheguei o encontrei com vida, mas já ruim.
OP – Antes do ocorrido, a senhora não notou qualquer comportamento diferente?
Judy – Não tive tempo suficiente para observar sinais, porque ele aprendeu na segunda e praticou na terça. Eu não conhecia essa prática, esse jogo, eu não tinha como fazer uma prevenção. Depois do que aconteceu com o Erik, passei a me dedicar ao trabalhar de ajudar outros pais e profissionais a se prevenirem contra os jogos. Os pais não sabem. Quando você olha para uma criança que tem uma determinação de vida, ele queria ser militar, tinha um futuro, não cabia praticar uma coisa que iria lhe tirar a vida. Como os cérebros das crianças e adolescentes não têm desenvolvimento suficiente para esse discernimento, ele achava que ia dar uma leveza e ia acalmar a frustração.
OP – As crianças disseramonde aprenderam o jogo?
Judy – O Erik tinha um grande amigo, parceiros de beisebol. Quando foi anunciado que foi uma morte trágica, ninguém falou. Mas o Anthony, o amigo, chegou pra mãe dele e disse que tinha visto o Erik no pátio da escola com outra criança, um tentando aprender com o outro. Eles nunca conseguiram chegar até essa criança do pátio.
OP – O que a senhora descobriu mais sobre o jogoda asfixia?
Judy – Meu filho foi socorrido, foi ressuscitado e tivemos de esperar 24 horas para ver se o corpo respondia. Nesse período, o detetiveMike Bleak, da polícia de Santa Mônica, veio até o hospital e revelou para mim que não era suicídio. O processo de investigação estava apontando para o jogo do desmaio. Eu não sabia o que era, fiquei abismada. Meu filho era muito inteligente para fazer algo tão estúpido como uma brincadeira dessa, mas eu não sabia do que se tratava. E a polícia insistiu, eu achava que os policiais estavam loucos. Mas quando o Anthony contou, passei a acreditar nos investigadores.
OP – Até então a senhora achava que era suicídio?
Judy – Não, eu não acreditava em suicídio porque ele não tinha um perfil para isso. Ele não foi achado fazendo isso escondido, estava na passagem entre a cozinha e a sala do apartamento. Achava que ele tinha entrado num colapso ao tentar usar a corda de escoteiro mirim. Eu ainda não tinha tornado público o caso do Erick e, três semanas antes, havia ocorrido um caso de bullying virtual em Massachusetts. Por causa disso, umamenina tinha cometido suicídio. No caso do Erik, as crianças sabiam que era jogo do desmaio e os pais achavam que era bullying virtual. Jornalistasligaram para saber se eu queria falar sobre o caso. A polícia perguntou se eu queria falar numa reportagem, mas alertou que o que tinha acontecido com meu filho era decorrência do jogo do desmaio.
OP – A polícia estava preparada para uma investigação tão específica?
Judy – A polícia de Santa Mônica, na Califórnia, onde moro, nunca tinha trabalhado em nenhum caso. Mas eles haviam passado por um treinamento para esse tipo de ocorrência. Na maioria dos casos, a polícia insiste que é suicídio e os pais brigam para dizer que foi causado por um jogo perigoso. No caso do Erick, eu não aceitava nenhum nem outro. Eles usam uma ferramenta chamada autópsia psicológica. Eles investigaram o histórico de vida do Erik e aí acharam evidências sobre o jogo do desmaio. A autópsia psicológica não traça apenas a evidência concreta da cena do crime, parte da subjetividade da vítima.
OP – Hoje, a senhora fala comserenidade. Como conseguiu transformar a dor?
Judy – Já são seis anos sem o Erik. Todo dia que eu acordo de manhã, tenho uma batalha entre a depressão e a realidade. Erik era filho único. Os anos que passei como terapeuta psiquiátrica, aprendi a colocar o meu chapéu de terapeuta profissional e, outras vezes, tiro chapéu e me transformo na mãe. Os primeiros anos foram difíceis, foi muito tempo e prática para que eu pudesse chegar e falar. Hoje de manhã, por exemplo, fiquem bem tocada. Aprendi também que as pessoas nunca irão me escutar se eu tiver muito emotiva, porque os pais têm muito medo de saber sobre coisas que podem afetar os filhos.
OP – Em algum momento a senhora se culpou?
Judy – O tempo todo, por muito tempo me perguntei sobre o que eu não vi. Me pergunto o que poderia ter feito antes. Com o tempo, reuni um grupo grande de pais. Ele está no Facebook, mas é fechado. Passamos a compartilhar nossas histórias e vimos que não éramos únicos com nosso dramaparticular. Isso alivia um pouco a sensação de culpa, mas não extingue. Eu me pergunto todos os dias: por que eu não sabia? A missão da Fundação Erik Cause diz que mesmo crianças que são muito espertas, podem fazer escolhas bobas, inesperadas e com consequências fatais para a vida. Se nós soubermos, poderemos prevenir. Aí nasce a Fundação Erik Cause.
OP – Quando a senhora teve o estalo e saiu da dor para ajudar outros pais?
Judy – A primeira coisa que a escola do Erik fez foi me cortar do grupo dos emails que todos os pais recebiam. Eu senti raiva. Como fui cortada, um dos pais me disse que a escola havia passado um comunicado afirmando que a família é que deveria lidar com o problema. Eles se excluíam do problema! Fiquei furiosa e resolvi escrever para o Conselho de Educação de Santa Mônica. Eu, que sou uma terapeuta especialista em criança, e uma psicóloga fomos recebidos pelo superintendente das escolas. Ele propôs que fizéssemos um programa não para mostrar a prática dos jogos perigosos, mas uma forma de prevenção. De como lidar com esse tipo de brincadeira. Na verdade, eles não acreditavam que íamos desenvolver o programa. Passamos um ano nos reunindo e chegamos a um conceito e a uma aplicação prática da prevenção.
OP – Hoje, como a escola do Erik lida com os jogos perigosos?
Judy- Eles não usaram o programa e o trabalho de prevenção foi levado para outro distrito, fora de Santa Mônica. Cinco anos depois, a escola de Erik liga para nós e diz que pegaram um grupo de meninas praticando o jogo. Finalmente, pediram para o trabalho ser implantado lá.
OP – Como funciona o programa de prevenção?
Judy – Trabalha-se com pais e crianças juntos. As escolas que permitiram a implantação do programa têm conseguido sucesso. O programa de prevenção foi montado juntamente com os conteúdos de ciência e saúde. Eles treinam o professor que passa a compartilhar com as crianças na sala de aula. Passou a fazer parte do currículo escolar de saúde. Nos Estados Unidos, existe um professor de saúde. Ele começa a ensinar a partir da 4ª ou 5ª série, depende do distrito, e segue para outras séries mais à frente.
OP – O que é feito para que não se torne uma coisa chata na escola?
Judy – Primeiro, o programa nunca mostra como se pratica o jogo perigoso. Nunca se aponta para o pescoço ou para o peito. Em um dos pontos, falamos fisiologicamente o que acontece com o corpo quando submetido a uma prática dessa. A interrupção do fluxo de sangue que carrega oxigênio para o cérebro. Conversamos sobre o funcionamento do cérebro. Mostramos que não são só hormônios de adolescência que influenciam no dia a dia dos jovens. Tem também a ver com desenvolvimento do cérebro que, muitas vezes, ainda não está preparado para discernir sobre certas situações.
OP – São diálogos?
Judy – O programa estimula, também, a capacidade das crianças e adolescente em dizerem “não”. Para saber lidar com a pressão dos colegas para fazer algo que pode ser prejudicial, como aceitar desafios dos jogos perigosos. Trabalhamos com frases e situações especificas onde cabem o “não”. Conhecendo os risco por causa da falta de oxigênio no cérebro, agora é dizer “não” para comportamentos perigosos.
OP – A maior parte dos adolescentes está na Internet, como se antecipar à descoberta dos jogos perigosos?
Judy – No site que usamos para o programa, não existem cenas chocantes nem como foi jogado. Nós ensinamos também como fazer escolhas saudáveis, ter um poder de reflexão sobre as decisões que eles têm de tomar. Uma das perguntas que colocamos para reflexão é: “Eu faria isso na frente dos meus pais?”. Se a resposta for não, eu terei de decidir se realizo ou não. Como o projeto está sempre em evolução, o próximo passo é desenvolver um trabalho específico para o ensino médio e educação na internet. A StephanieSmall, que é a terapeuta do grupo de estudos, está trabalhando nesse sentido.
OP – Com os professores, pais e alunos, a senhora fala do que aconteceu com o Erik?
Judy – A história do Erik não é trazida como motivo para estarmos ali conversando sobre jogos perigosos. As escolas nos Estados Unidos têm um programa de contenção de riscos para jovens. Então, trabalha-se discutido sobre drogas, sexo, saúde, bullying. E nós entramos com parte desse de prenção desses riscos. Os conteúdos antigosmeio que cansamos jovens. Tentamos apresentar algo diferente, sem ser chato, para que meninos e meninas se interessem.
OP – Que missão foi essa que a senhora recebeu do destino?
Judy – Levo comigo as cinzas do Erik (mostra um pequeno objeto pendurado, como uma medalha, a um colar). O Erik tinha um espírito de querer servir as pessoas, não foi uma coisa que o ensinei. Apesar do que aconteceu, sou cheia de vida, sou teimosa e luto para que as coisas aconteçam. Não sou religiosa, mas uma avó de um amigo do Erik disse que ele era uma alma antiga que havia lutado na Guerra Civil americana e foi chamado novamente para lutar em outro plano. Não conheci o Erik por inteiro, não deu tempo, mas o meu trabalho é continuar a batalha dele por aqui. Ele deixou uma missão que não é comum, não é popular, ninguém estava fazendo. Agradeço, imensamente, a oportunidade de fazê-la. Ao longo dessa jornada já encontrei pessoas que vão nos completando, nos conectando. Como é o caso da Stephanie Small e de Mike Bleak, detetive que trabalha cientificamente com os jogos perigosos. Além de vários pais e gente que eu nunca imaginaria que iria conhecer pelo mundo.
OP – Não há uma literatura sobre jogos perigosos e epidemiologia?
Judy – Há uma médica americana, que perdeu o filho em 2005, que é responsável por uma pesquisa, a doutora Patricia Russell. São dados bem limitados, mas é o começo de uma pesquisa de informações oficiais do Centro de Controle de Doenças dos EUA. Existem alguns outros estudos.Essa médica, que vem trabalhando desde 2012, conseguiu introduzir o código do jogo do desmaio no CID 10. Desde 1º de outubro deste ano, ele aparece como Danos ou Lesões Pelo Jogo do Desmaio. Agora, os médicos precisam ser treinados para saber diagnosticar. Finalmente, existirá um registro para que possamos colher e trabalhar com dados oficiais. O próximo passo da doutora Russell é conseguir que a Organização Mundial da Saúde (OMS) adote esse código também para a vítima que morre em decorrência do jogo do desmaio. Há uma pressão para que isso ocorra, pois isso é uma realidade entre crianças e adolescentes.
Fonte: O POVO
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